Sobre

modal

O homem das palavras

"Mas a senhora sabe", dizia o jovem senhor de terno à mesa enquanto mexia seu café com a pequena colher de metal, "eu costumo dizer que a família é a coisa mais importante. Quem tem uma família forte e dedicada nunca terá um medo real na vida".

A senhora a quem se dirigia esfregava uma panela com veemência para remover uma mancha mais persistente. "Sabe que é verdade?", disse ela ofegando. "Todo mundo pode ir embora, mas a família sempre tá ali". O barulho da palha de aço esfregando contra o metal dava um fundo caseiro à conversa entre recém conhecidos.

Até aquele momento, a simpática senhora não se questionou uma vez sequer sobre seu visitante. "Por que o deixei entrar?", "O que ele quer com meu filho?". Nada assim passava por sua cabeça. O homem parecia ter as palavras certas para dizer para manter a mulher sob encanto do seu carisma. Vestia um terno e carregava uma maleta, e tinha o tempo todo um sorriso despretensioso no rosto.

"Eu sempre digo pro Rogério", começou a mulher a devanear em voz alta, se referindo obviamente ao filho único. "Corre atrás do que você quer, menino. Não dá ouvido pra essa gente que fica agourando o seu trabalho. Olha lá agora. O menino fez tanto dinheiro com os últimos quadros que pagou a casa, e a gente tá planejando a reforma pra começar mês que vem".

O orgulho era tangível na voz da mulher de posses modestas. Entendia pouco sobre o ofício do filho. Sabia que ele pintava quadros, e que recentemente conseguira contato com certa casta da alta sociedade muito interessada em arte. Sabia também que ele não teria chegado onde chegou se desse ouvidos ao pai, que não se conformava que o filho dedicasse uma parcela tão larga de seu tempo a algo que não desse dinheiro quando poderia trocar seu emprego de meio período por algo mais rentável. Era claro que o pai estava aos poucos cedendo à ideia depois de ver os boletos pagos das prestações atrasadas de sua residência.

"Eu soube", disse o homem com um sorriso um pouco mais largo que o de costume. "Ele vendeu pra gente muito importante. E eu acho que não vai parar logo, ouvi que tem gente com inveja dos amigos querendo fazer encomendas com seu filho. Sabe? Pra não ficar pra trás. Essa gente rica…" pontuou com uma risada entre dentes.

O som da chave girando na fechadura interrompeu o diálogo para anunciar a chegada do membro mais aguardado da conversa. Rogério entrou desajeitado, segurando pacotes de compras em um braço e a chave da casa na mão livre, e foi acudido às pressas pela mãe para que não derrubasse nada. O visitante à mesa se levantou e ajeitou o paletó para recebê-lo em pé, conforme comanda a etiqueta.

O sorriso no rosto de Rogério ao reconhecer a figura que o aguardava era radiante. "Você!" exclamou animado. "Mãe, por que você não me avisou que ele estava aqui?". Às pressas largou os pacotes à mesa e apertou-lhe a mão afoitamente. "Por que você não me avisou que vinha?" questionou quase tom de desculpa.

"Estávamos falando de você" disse o homem. "Sua mãe estava me contando sobre suas vendas. Parabéns!"

"Eu nunca consegui te encontrar pra agradecer", falava o rapaz enquanto recuperava o fôlego. "Mãe, esse é o Gerard, aquele que eu te contei! Ele que me deu as direções praquele cliente que começou tudo isso!"

A mãe, finalmente consciente de quem era o homem que recebera em casa e a quem oferecia café, colocou as duas mãos em frente à boca com os olhos arregalados. "Meu Deus do céu", disse pasma. "Então você é aquele amigo do Rogério que ajudou ele...".

O homem arregalou os olhos e fez um sinal com a mão, como se afastasse a quase veneração que a mulher transpirava. "Por favor, eu só sugeri um caminho. O mérito é todo do seu filho, ele que fez os quadros e os apresentou pessoalmente".

"Você sugeriu um caminho" disse Rogério rindo. "E um horário, e um tema, e alguns assuntos. Seguindo os seus conselhos, é como se eu soubesse tudo que ia acontecer, e soubesse como reagir".

Rogério e Gerard riram juntos. O visitante era uma aparição rara. O pintor apresentava seus quadros em uma amostra de arte, e Gerard, em seu porte modesto embora elegante, manifestou muito interesse na obra, mesmo que não fizesse nenhuma forma de menção de compra. Em uma conversa descontraída sobre obras surrealistas, sugeriu o estranho um lugar em que o artista deveria aparecer em um horário específico e falar com uma pessoa específica, que seria capaz de inserí-lo em uma amostra de arte reservada a figurões da alta sociedade, do tipo competitivo e constantemente em busca de afilhados artísticos. Lá, ele deveria expôr dois quadros com temas muito específicos; aos interessados, deveria aludir a elementos peculiares, mas igualmente bem definidos.

O sucesso foi tão grande que a clientela resultante já comprara mais de 10 quadros, cada um a preço nunca antes concebível pela mente habituada às escarças vendas nas amostras marginais a que tivera acesso até então. O guia de toda essa transformação, porém, desapareceu com a mesma espontaneidade com que surgiu: nunca se ouviu qualquer notícia sobre Gerard desde seu ensaio quase profético.

"Eu nunca consegui agradecer" disse Rogério.

"Não é necessário", disse Gerard. "Você é um tipo raro de artista. Eu adoraria viver em um mundo onde vocês fossem mais fáceis de encontrar". Sua voz não transpirava falsa humildade, modéstia ou soberba: tudo lhe transcorria em naturalidade tal que não faria sentido imaginar que a reação da família o afetaria de qualquer forma.

"Mas..." seguiu Gerard em sua fala antes que outro assunto pudesse tomar a conversa, "infelizmente eu preciso te pedir um favor dessa vez. Você teria tempo para conversar?"

Rogério confirmou empolgado muitas vezes com a cabeça e juntou as sacolas na mesa. "Vem comigo aqui no estúdio", disse enquanto conduzia o visitante para o pequeno quarto onde costumava pintar suas telas. Teria finalmente a oportunidade de agradecer de forma apropriada!

Ali, haviam três cadeiras e uma pequena mesa redonda a um canto. Rogério costumava usar aquele lugar para receber amigos e tomar cervejas sem incomodar a rotina de seus pais. "Sente-se, por favor" disse ao visitante enquanto tirava dos pacotes os pincéis e tubos de tinta recém comprados e os depositava em um balcão manchado de diversas cores. "Me diga então. O que eu poderia fazer por você?"

"Eu preciso de quadros", disse Gerard sem delongas. "Claro, se você tiver o tempo. É para a minha família, essas coisas são importantes pra nós. Eu precisava de quatro".

Rogério se sentou sorrindo à mesa junto a Gerard. Poderia agradecer a seu agente com seu trabalho, o que parecia muito apropriado. "Claro! Se eu não tiver o tempo, eu prometo que arranjo. Você quer algo específico?"

"Sim", disse Gerard com um sorriso satisfeito. "Você leva jeito pra essas coisas mesmo. Um para cada estação do ano. Não quero dar nenhum palpite sobre o que você vai mostrar sobre elas, só que esses são os temas. O que elas te lembram… o que elas te inspiram… o que te parecer apropriado. Tome o tempo que precisar, não deixe isso atrapalhar suas encomendas".

"Um tema bastante subjetivo", disse Rogério confirmando com a cabeça. "Eu gosto. Será um prazer".

"E se não for pedir demais, eu queria também pedir que você não falasse com ninguém sobre esses quadros. Tudo bem se as pessoas os virem, mas não mencione que são pra mim, nem qual é o tema".

Rogério nunca ouviu um pedido como esse antes, e em particular, pelos últimos meses, costumava ouvir o oposto, como "Tire fotos e conte para todos que eu que encomendei". Mas Gerard parecia sempre o tipo discreto, e isso parecia encaixar com seu comportamento. O artista preferiu não questionar; estava contente com as condições. Mas, naturalmente, havia a questão que precisava ser levantada...

"Como eu faço pra te entregar? Te encontrar é mais difícil do que eu pensava".

Gerard sorriu. Entregou de seu bolso interno um cartão, que dizia apenas "Gerard Fausto" e um número de telefone. "Me ligue, eu venho buscá-lo ou peço para alguém".

"Claro!" disse Rogério entusiasmado. "Eu aviso".

"Se você não se importar… odeio ter que fazer isso, mas eu tenho um compromisso muito importante no centro da cidade em uma hora, e eu realmente preciso ir" disse Gerard transparecendo um peso na consciência incomum por se retirar de forma tão prematura.

"Sem problemas", disse Rogério. "Pena que não possa ficar mais. Venha, eu abro a porta".

Gerard agradeceu polidamente à anfitriã da casa pelo café e se retirou, se despedindo de Rogério com um aperto de mão cortês. Saiu pelo portão baixo da casa humilde carregando sua maleta e caminhou sem pressa pela calçada ensolarada. Uma vez fora de vista, sacou de um bolso o telefone celular e fez uma ligação.

"O rapaz fará as pinturas", disse em tom natural e em seguida baixou a voz. "E aquele garoto, ele se saiu bem? Cades é difícil, mas é sensato… Sim, temos muito o que analisar essa noite. Eu consegui o nome a que o padre aludiu tantas vezes: é uma mulher que atende por Carla Carman, mas seu nome original já se perdeu para o tempo junto com sua seita. Encontrem o que puderem, ela parece ter uma trilha fresca de sangue a seguir. Chego em casa a tempo para a comunhão, tenho apenas um último compromisso na agenda e estarei a caminho. Te vejo lá. Luz sobre seus caminhos, irmão".
Leia Mais

O carniçal

A paisagem diurna revela as formas e as cores de uma cidade agitada. A passagem do Sol torna vivas as travessias e becos, e revela cada rosto em sua forma única. A noite, por outro lado, oculta formas completas e presenteia olhos apenas com silhuetas idênticas. Marcadas pelo contraste entre as intensas sombras e as luzes amareladas dos postes de iluminação pública, as vias noturnas de Entre Metais formam uma cidade diferente daquela que os trabalhadores diurnos conhecem bem.

Luzes são expositoras de pessoas descuidadas e becos são reduto para aqueles que não querem ser vistos. Era uma combinação de ambos o homem que entrou naquele beco qualquer.

De madrugada, o caminho para casa é sempre um momento de refrescar a cabeça. Terminado o período de festa, ainda ressoantes em seus ouvidos os intensos ruídos da casa noturna, Fineas aproveita a desnecessária caminhada para refletir sobre seus problemas pessoais, curiosa ironia considerando que passava suas noites sob música alta e álcool para que pudesse ignorá-los.

Talvez valha ressaltar que esse homem não podia usufruir do privilégio de beber para esquecer. Há muito tempo não surtia sobre seu corpo efeito algum o odioso álcool. Poderia beber litros de bebidas destiladas fortes e dirigiria em segurança para casa - embora não tivesse como explicar à polícia o resultado consequente sobre o bafômetro. Não, explicações eram inconvenientes, sabia disso há muito tempo, e por isso andava com o corpo cheio de álcool e os sentidos em perfeita ordem.

O morador informado de Entre Metais pode reconhecer no nome incomum uma figura pública. Poucos conhecem homens de nome Fineas, e talvez seja ainda mais raro conhecer por esse nome homens pálidos, loiros e de constituição robusta típica dos homens vaidosos e praticantes de esportes. Estaria certo o morador bem informado em assumir que era esse mesmo Fineas o secretário do prefeito que muitas vezes atua como porta-voz da prefeitura para os programas de rádio.

As pessoas habituadas ao tom imponente de sua voz e à sua habilidade singular em irritar repórteres com suas respostas atravessadas não esperariam encontra-lo usando um beco em uma rua pouco movimentada para urinar em plena madrugada. Ainda assim, lá estava Fineas: um banquete ignorado para a imprensa que por ele não alimentava grande apreço.

Mas não é apenas político e boêmio o descuidado secretário: é também criatura das ruas, conhecido de outras criaturas das ruas, e por isso andava sozinho e não temia as sombras. Talvez fosse por isso que aqueles que com ele têm desavenças escolhessem outras pessoas menos informadas para a passagem coersiva de recados. E foi em uma dessas péssimas escolhas profissionais que caíram os três homens que, segurando pés de cabra e chaves de boca de automóveis, o cercaram enquanto urinava.

"Fineas" disse um deles. "A famosa língua de chibata. Tem alguma coisa que você deveria ter resolvido para Alanino essa semana. Ele não está feliz".

Fineas terminou o que fazia, fechou com calma a calça e se virou para os homens que o cercavam. "Aí ele mandou vocês aqui pra falar comigo? Vocês limpam a bunda dele também?"

"Escuta aqui, colega" se adiantou um outro a falar. "O recado de hoje é pro cara que não faz o que é pago pra fazer e não atende o telefone".

"Eu fiz o que Alanino me pediu em troca do cargo. Ele que vá à merda agora".

Três rapazes de recado de um criminoso com influência política raramente são enviados para apenas passarem recados verbais. A missão deles era passar outro tipo de recado, para que a dor, e não as palavras, manifestassem a frustração do patrão em não ter seus pedidos atendidos. Foi para isso que eles vieram, e foi com essa mentalidade que o terceiro, até então quieto, acertou o joelho de Fineas com seu pé de cabra deixando soar um estalo doloroso de osso partido.

"Filho da puta!" gritou Fineas caindo ao chão. Os três riram.

"Você vai ter bastante tempo pra pensar no hospital, infeliz" disse um deles erguendo a chave de roda para um novo golpe; a expressão da vítima não foi a de quem antecipa dor, mas a de quem ri com a alma.

"Hospital! O chefe de vocês é um ignorante mesmo".

Após uma sucessão de golpes e risos, os três pararam para conferir o homem desfalecido ao chão: membros em posições pouco naturais, o rosto marcado em roxo de solas de sapato e a roupa rasgada pareciam a visão do recado ideal. O próximo secretário haveria de ser mais sensato. Os três se afastavam soltando as armas improvisadas, conversando baixo e acendento cigarros.

"Ei" exclamou a voz de Fineas. Quando se viraram, viram o secretário apoiado à parede, o rosto inchado, o sangue escorrendo pela roupa e a perna torta pelo osso quebrado. "Mas me diz assim… ele tava chateado tipo 'muito puto'? É verdade que ele come o cu dos capangas quando tá assim? É muito grande? Digo, o pau dele".

Os três riram. "Cara, esse sujeito deve ser daqueles que gostam de apanhar".

"O nome é masoquista" complementou o outro do topo de sua sabedoria. "Vamos deixá-lo feliz, pelo menos vai compensar pela noite. Ele só precisa estar vivo, ninguém falou que ele precisava dos dois braços".

Voltaram a se aproximar do secretário a passos largos e mãos nuas. O primeiro soco atingiu o rosto, um chute atingiu a boca do estômago, mas o terceiro golpe, outro soco, encontrou um braço em posição de defesa. Fineas acertou um dos atacantes em uma costela com um punho em velocidade suficiente para partir um osso; em seguida, bateu com a testa no nariz de outro, o apanhou pela roupa e o lançou contra a parede de tijolos do prédio que formava o beco.

O terceiro, não preparado para essa reação, deu um passo assustado para trás. Em um movimento brusco e rápido, Fineas se apoiou na perna boa e se jogou para cima do homem, rolando com ele pelo chão por vários metros.

"Então é a minha vez de passar um recado, moleque de bosta" sussurrou o secretário gotejando sangue de sua boca junto com a saliva expelida quando falava com os dentes quebrados, fazendo força para se apoiar sobre o joelho bom.

Descontando a frustração pela dor que sentia, desferiu um soco contra o rosto do homem de olhos arregalados incapaz de esboçar reação. "A cadeia alimentar aqui é outra. Vocês podem ser uma matilha de cachorros muito organizada, mas ainda são só cachorros". Se aproximou para falar ao ouvido enquanto as mãos de força descomunal seguravam os braços. "Cachorros não me assustam".

Com agilidade, se levantou sobre uma única perna como quem já tivera o desprazer de passar por essa situação diversas outras vezes, ergueu o agressor do chão em um único súbito movimento e o prendeu contra a parede.

"Essa coisa da perna dói pra caralho" disse baixo enquanto ria. O outro, tonto pelo golpe no rosto, tentava esboçar palavras - talvez algo como "não" ou "desculpa" - mas foi interrompido pela súbita dor em seu braço conforme os dentes de Fineas se aprofundavam em sua carne e arrancavam parte de seu músculo. O grito se converteu em silêncio e a dor se fez em escuridão conforme a mente decidia pelo abandono do mundo real e pelo desmaio. Mas não haveria oportunidade para isso: O secretário sacudiu a cabeça do homem. "Fique comigo. O recado é pra você também" disse de boca cheia enquanto mastigava e sentia o sangue escorrendo pelo queixo. Mais duas mordidas e não havia mais bíceps e parte do tríceps. A dor lacerante encontrava a noite escura na forma de gritos de desespero enquanto as janelas da rua próxima se fechavam.

Quando Fineas soltou o homem para que caísse em convulsões no chão, não mais parecia ter uma perna quebrada - apenas mancava como se tivesse uma dor inconveniente no joelho. O osso do braço de sua vítima à mostra era a evidência ostensiva do ato de canibalismo ali cometido - uma das muitas atrocidades que as ruas de Entre Metais testemunham em mudo consentimento todas as noites.

Quando se deu conta, Fineas estava entre três homens inconscientes, um deles sangrando por um ferimento grotesco no braço. Enquanto dois deles poderiam ser internados como vítimas de uma briga qualquer de rua, o último certamente seria um inconveniente para aqueles que se beneficiam do silêncio. Com isso em mente, o secretário decidiu realizar um telefonema.

"Dário..." disse em tom de remorso. "Eu tenho um cara num beco".

A voz sonolenta do outro lado da linha externalizava a frustração de ser acordado de madrugada por algo assim. "Não é a primeira vez, Fineas. Quantas vezes Lucas te disse pra cuidar com a fome?"

"Foram três homens do Alanino. Eu seria hospitalizado se não tivesse feito nada".

A linha telefônica ficou em constrangedor silêncio por alguns segundos.

"Eu vou até aí" foi a resposta. "Ele vai sobreviver?"

O secretário olhou para o homem caído ao chão conforme a poça de sangue ao seu redor lentamente aumentava em área. "Não. Se ele tem sorte, já morreu".

Assim, discorreu que, minutos depois, três pessoas apareceram para limpar lugar e entregar roupas novas a Fineas. É claro que o favor não seria gratuito - as negociações aconteciam em favores políticos.

Os dois homens inconscientes seriam hospitalizados e seu colega seria dado como desaparecido enquanto seu cadáver seria lentamente devorado por peixes. Os vizinhos falariam do grito que ouviram, mas das imagens que não viram. "Um estupro", "mas o grito não foi masculino?". "Latrocínio!". Mais ousados e mais próximos da realidade, os místicos da vizinhança falariam em demônios que abduzem pessoas na calada da noite nos becos escuros das vias secundárias. Não haveria imprensa além de tabloides de segunda categoria.

Assim se passaria mais um assassinato atroz em Entre Metais, como são aqueles realizados pelas coisas que não deveriam existir: escandaloso e despercebido.

Leia Mais

Predadores

Matéria de pequena relevância para a grande mídia, circulou por redes sociais um link de um tabloide de segunda categoria, classificando como "bizarro" pelos crédulos da mitologia urbana de vida curta, a respeito de um disparo de uma arma de baixo calibre em um beco qualquer de um bairro da zona leste de Entre Metais.

Não impressionava o disparo em si ou o atendimento às pressas a uma vítima com um perfuramento no rim direito, mas sim a descrição completa dada pela polícia: a vítima, um sujeito já procurado por suspeita de repetidos assaltos sexuais a mulheres de diversas regiões da metrópole, foi encontrada inconsciente e à beira da morte, e as evidências sugerem que o disparo ocorreu de suas costas. Um ato de vingança para alguns, uma medida de justiça divina para outros: o autor do disparo ficou consagrado nas intermináveis conversas virtuais como o esperado justiceiro de que a cidade necessita. Independente da versão aceita para a orientação moral de seja lá quem for, o atirador não foi visto ou identificado. O mais próximo de uma evidência que levasse a qualquer pessoa era uma ligação de telefone, muito mais estranha que o resto do caso.

O que poucos sabem é que não há justiceiro ou ato divino nessa empreitada específica. Ela é real, como muitos absurdos rejeitados pelos editoriais dos periódicos de grande circulação, mas foi realizada sem paixão - talvez um pingo para fins de honestidade - ou pretensões de execução em nome de qualquer ideal. O caso foi resolvido, como muitos outros, em uma transação comercial como muitas outras: um escambo de vida por dinheiro - cuja fonte, essa sim, tinha um interesse passional pelo desfecho desastroso da vida do famoso estuprador.

E foi assim que aconteceu: após dias traçando itinerários e tentando entender padrões na rotina do homem, a mulher que atende pelo nome de Carla Carman finalmente foi capaz de identificar seu alvo.

Uma curva à esquerda e o caminho se convertia na rua estreita de paralelepípedos destinada apenas a pedestres. A moça andava a passos largos e apressados, ecoando nos estalos dos calcanhares de suas botas o nervosismo da mulher forçada a caminhar sozinha à noite por ruas mal movimentadas, um sentimento apenas delas conhecido. Era teatral o esforço, como também era teatral o olhar apreensivo, que já captara o agressor à distância em um canto escuro sem que ele o soubesse.

Era belo o contorno de Carla, mas entendia bem a mulher que isso não era necessário para buscar essa laia. Vestia um casaco comprido vermelho e calças pretas que acompanhavam a silhueta de uma praticante assídua de esportes. O rosto era moreno, os lábios finos e o nariz empinado, e sardas, invisíveis àquela parca iluminação, pontuavam seu rosto com um traço inesperado para sua cor de pele.

Por que aceitou esse trabalho? Pais de família comuns não são seus clientes habituais. Vingança? Já operou muitas vezes sob esse mote, mas sempre em casos que envolvessem outra casta da sociedade citadina. Havia, porém, alguma simpatia naquele homem simples que ligou forçando na voz uma resolução que não era a sua. A fraqueza da alma atormentada pelo sofrimento da filha… Carla não sentia empatia pelo sofrimento de uma vítima de estupro, não operava assim seu coração depravado. Foi a falsa bravata daquele homem e a ousadia de buscar um assassino de aluguel após uma vida de trabalho honesto e impostos pagos em dia que a impeliu na direção daquele serviço que considerava bobo; ela sentia uma forma curiosa de prazer em se fazer extensão daquele tipo de ira.

Mais passos apressados e agora seu alvo se movimentava em sua direção. Sim, ele era um predador, e ela era uma presa - esse era o teatro sendo encenado. O olhar na direção correta e as mãos nos bolsos do casaco prentendo a bolsa contra a cintura eram suficientes para inspirar no homem a segurança de que precisava para o ataque. A mulher virou para o beco escuro como quem deseja cortar um caminho, tornando ainda mais atraente a ocasião para o bote de seu desavisado caçador de aventuras odiosas.

Não havia transeunte além deles - o palco perfeito para tal ato. Erguem-se as cortinas da cidade grande e entram em cena duas castas diferentes de predadores para a apreciação da plateia de deuses que se contentam em assistir e aplaudir, mas nunca em lançar flores.

O homem a seguiu a passos firmes com sua faca na mão direita oculta no bolso da calça jeans de corte elegante. Tinha altura próxima de 1,80 e ombros largos, rosto bonito e roupas de marcas famosas. Quando pegou pelo ombro sua vítima, sorriu. Tampou da mulher a boca com uma mão enquanto a outra lhe pressionava o pescoço com a lateral da lâmina. Sim, que achado… era linda a mulher. Quando a encostou no muro, saboreou com reverência o olhar de desespero.

Ao menos era isso que acontecia em sua mente. No beco do mundo real, porém, estava de frente para a parede, apoiado com uma das mãos, enquanto Carla, às suas costas, o observava interessada. Ele gemia - estava claro que sua fantasia o fazia sentir muito prazer - mas seu corpo permanecia estático. "Fantasia" era o nome que Carla dava a seu artifício preferido. Lançar imagens à mente de uma pessoa é muito difícil, mas o subconsciente é uma fábrica fantástica de fantasias - ele pode se ocupar de criar imagens mais reais que a própria realidade. Medos ou desejos muito profundos se materializam com facilidade, dado o esforço adequado e o conhecimento pertinente da magia envolvida.

Refino em exagero para um trabalho tão sujo. Carla tirou com calma o revólver de sua bolsa e o encostou na nuca do homem que não tinha ideia do que acontecia. O que levava um sujeito tão "bem apessoado" e conformado aos padrões dessa cidade a repetidamente se engajar em assaltos sexuais quando poderia com um mínimo esforço conseguir sexo consensual com alguma mulher em alguma casa noturna?

"Geme, vadia" murmurou o homem do fundo de seu sonho desperto. Carla não sabia o que ele via - era a mente dele que fabricava as imagens, e não a dela, mas mantê-lo sob esse efeito dava à maga experiente vislumbres das sensações que experimentava aquela mente conturbada.

Não era abstinência sexual seu problema. Não era também puramente uma doença mental. Era a sensação de poder… como ele se deliciava com aquilo, viciado que era na droga de seu prazer forçado. Faria novamente e novamente, e só pararia quando alguma Carla o encontrasse em uma curva, com a motivação correta. Ela entendia isso melhor que ele.

A assassina finalmente percebeu que aquele homem encontraria paz, e não mais teria de caçar seu prazer para saciar esses desejos obscuros. Que breve momento de maquinação maligna trouxe seus sentidos à nuca do homem quando ela a imaginou raspada enquanto ele vestia um uniforme em um presídio e era violentado por seus parceiros de cela à vista grossa de um agente carcereiro mal pago. Quais seriam as sensações dele naquele momento? Ele mesmo não parecia temer. "Que tal um jogo de azar?" perguntou ela para o vento. "Você cai aqui, inconsciente, com um ferimento grave. Se morrer, os deuses assim o quiseram. Se viver, que sua nova vida te sirva para alimentar novas fantasias. Me diz, querido… você se sente com sorte hoje?". Sorriu e deixou escapar um riso fraco.

Trouxe a arma da nuca de seu alvo e o encostou nas costas, à altura do rim direito. O celular no bolso do homem dava sinais de querer cair, então o tomou e ligou para a polícia.

"Eu tenho um homem à minha frente e tenho uma arma encostada em suas costas. Se ele não receber atendimento rapidamente, morrerá". Antes que as perguntas da operdora de telefone da polícia ao outro lado da linha chegassem à interrogação, o disparo ecoou por diversas ruas desertas.

Quanto ao cliente? Nunca precisou pagar pelo serviço.

Leia Mais

A legião de Entre Metais

O rapaz levantou o dedo e pediu por mais uma cerveja. Sentado sozinho à mesa, deixava claro que passava dos limites conforme as garrafas vazias se enfileiravam ao chão.

O infame bar do Elos usufruía de um movimento moderado, mas constante. Clientes entravam e saíam, nunca se acumulando. Poucas cervejas por mesa, poucas doses destiladas para alguns clientes frequentes. Não era o lugar pra se demorar.

O garoto não tinha nenhum apreço particular pelo ambiente. Era sua primeira visita por ali, e seu contato já estava atrasado em 20 minutos. Apreciava, porém, a desculpa para arrematar mais garrafas de cerveja, e a aproveitaria enquanto pudesse.

Um desconhecido se posicionou em frente à mesa vestindo calças escuras com suspensório e uma camisa clara. Usava um casaco sob o qual um volume sugeria um coldre oculto com uma arma de baixo calibre.

"Jean?" indagou o recém chegado. Observava o garoto de olhar sonolento tomando despreocupado de seu copo meio cheio de cerveja: Jean tinha cabelos curtos e escuros, barba por fazer, olheiras profundas em olhos castanho-claros adornando um rosto quadrado de maxilar largo. Certamente era o homem da foto que lhe deram, certamente em uma condição muito distante da ideal para uma conversa civilizada.

"Pode ser" respondeu o rapaz arrastando as palavras com um pequeno esforço. Apontou a cadeira vaga do outro lado da mesa com um gesto cambaleante de mão. "Sentaí, pede mais uma. Essa tá acabando".

O homem se sentou com uma expressão incrédula. Tinha a pele e olhos negros, lábios grossos e nariz largo compondo um rosto alongado, e mantinha a cabeça meticulosamente raspada.

"Eu sou Cades" se apresentou sem fazer menção de apertar a mão de Jean. "E você está bêbado".
O garoto riu balançando a cabeça, não ficando claro se o fazia por desdém ou por dificuldade de mantê-la firme.

"Eles não calam a boca", respondeu Jean. "Quem sabe se eu ficar grogue o bast… bastante eles param de me encher o saco. Ninguém quer falar com bebum".

Cades o observava seriamente. Percebia logo que tratava com uma alma atormentada. Talvez fosse de fato maluco, como outros  lhe adiantaram. Fosse como fosse, seu trabalho ali era verificar se o rapaz poderia ser útil de alguma forma.

"Eu te chamei aqui pra discutir algo sério. Não esperava te encontrar nessa condição".

Jean baixou a cabeça e deixou escapar um soluço fraco. "Cades? É esse o nome que você disse? Você me chamou pra conversar sobre as coisas do outro lado, não pra me dar terapia".

"Quem você quer afastar?" perguntou Cades, visivelmente frustrado pela viagem perdida.

"Vai saber" bradou Jean aos risos. "Pode ser qualquer filho da puta. Pode ser algum soldado da inquisição… talvez algum amante morto por um marido  ciumento. Talvez até a tua mãe. Só sei que hoje eles não querem calar a boca".

A ficha dizia que Jean afirmava ouvir pessoas mortas. Talvez o estresse o colocasse pra beber. Independente da explicação, estava claro que ele era maluco.

"Meus colegas acham que você pode ter algum dom interessante para nós" se adiantou Cades. "Como eu posso diferenciar você de algum maluco qualquer que ouve vozes?"

Jean levantou o copo vazio à altura do rosto e se arrastou nas palavras: "Pede mais uma que eu chamo algum bisavô teu pra dar depoimento". Riu sarcasticamente e começou a tossir.

Cades olhava para um ponto distante, cada vez mais convencido de que perdia tempo. Um silêncio pesava sobre a mesa, ofuscando completamente o ruído da circulação de pessoas pelo bar.

Jean suspirou e esfregou os olhos. "Não é um dom, detetive" começou a falar repentinamente sério. "É uma maldição. Numa cidade desse tamanho, os mortos estão por todos os lados. Para mim, essa cidade é mais deles que dos vivos".

"E por que não se muda pra alguma região isolada e mais tranquila?"

"Aí são só os meus cadáveres que me acompanham. Eu prefiro a legião de Entre Metais".

Cades o olhava nos olhos. Não era um mentiroso, isso estava claro. O estresse estava presente em cada suspiro e em cada sílaba arrastada pelo álcool. Sabe-se lá o que se passa por essa mente conturbada. Talvez fosse melhor deixá-lo para lá. Indicar tratamento psiquiátrico.

"Mas eles não param nem que eu desmaie de bêbado", continuou Jean. "Bando de gente teimosa são os mortos. Eles não pensam como a gente. E eles não têm tato" disse Jean com um indicador em riste, soluçando quando dizia "tato".

"O que eles te dizem?" perguntou Cades, já pensando no que tinha para fazer depois dali e se preparando para sair.

"Agora? Tem um falando pra você me pagar uma cerveja. Eu acho que você deveria ter mais respeito pelos mortos".

Cades riu e se levantou deixando alguns dons para ajudar na cerveja, embora não tivesse bebido um gole sequer.

"Não os deixarei desapontados" disse ajeitando a gola do casaco para se retirar.

"Tem um gritando o seu nome aqui e dizendo que Laura deveria estar morta, e não presa" falou Jean em tom de pouca importância. "Eles querem gritar com você, mas só eu que ouço… você guarda sua irmã num porão ou algo assim?"

"Não tenho ideia de quem é Laura" completou Cades, fazendo meia volta para sair. "Passe bem, Jean. Procure um psiquiatra".

"Laura Pessatti… que nome estranho. Nunca ouvi. Bla bla bla, fogo, tua família. Ninguém se importa, cara. Chega".

Cades parou à menção do sobrenome e se virou para olhar o jovem bêbado à mesa enquanto ele fazia sinal para que Elos lhe trouxesse ainda outra cerveja. À aproximação do dono do bar, Cades fez um sinal com a mão indicando que não deixasse a garrafa ali. Aproximou-se novamente da cadeira e se sentou.

"Onde você ouviu esse nome?"

"Qual? Pessatti? Tinha um cara gritando pra você agora há pouco. Quer trocar? Você conversa com ele e eu arranjo um emprego que me deixa vestir roupa bacana assim. Aí eu mando a sua cerveja não vir, pra você ver como é bom". Balançava a cabeça inconformado. Estava bastante atento, apesar de tudo. "Se você tivesse que ouvir o monte de merda que eu ouvi hoje, você também beberia. Dom… essa merda não me deixa nem parar no mesmo emprego por mais de dois meses".

"Ouviu hoje? Não costuma ser assim?"

"Alguma coisa aconteceu hoje" disse Jean torcendo o nariz. "Alguma coisa do outro lado. Sei lá o que foi. Eu sempre escuto um povo gritando por aí, mas desse jeito num tem condições".

O nome Laura Pessatti não era um mero acaso, disso Cades tinha certeza. A mulher não fora anunciada à mídia com esse nome, e estava claro que o rapaz não ligou o nome à pessoa.

"Você consegue controlar essa coisa? Você consegue escutar coisas quando quer?"

"Por que alguém ia querer escutar essa merda toda?" esbravejou Jean inconformado. Apoiou os cotovelos na mesa e a cabeça nas mãos esfregando os olhos. Novo silêncio pairou sobre os dois por alguns segundos.

"Escutar eu não escolho" articulou devagar, se esforçando para pronunciar as palavras e não estremecer a voz com o choro que parecia querer sair. "Tem uma outra coisa que eu faço… não sei se é outro… dom… ou se é a mesma coisa de outro jeito. Essa eu faço quando quero".

"Tipo?" indagou Cades o olhando com uma sobrancelha levantada.

Jean balançou o rosto tentando recobrar a atenção. Pensou por um instante olhando para o nada, com a palma de uma mão apoiada na mesa, então começou a olhar para os lados, como se tivesse alucinações. "Você esteve nesse bar algum tempo atrás. Sei lá quando. Você vem bastante aqui, mas dessa vez você está sentado com um outro cara naquela mesa" apontou com o nariz para um ponto onde não havia mesa alguma. "Ele tem um cabelo comprido e bem cuidado, preso atrás, e umas olheiras escabrosas… eu acho que já vi esse cara em algum lugar. Tá tudo muito nítido… o rapaz deve ser um tipo muito raro. Vocês são magos, não são? Sim, aquele é Pietro. Pietro Arcanjo, tô lembrado agora. Ele já me procurou uma vez. Agora você tá passando uma pasta pra ele com uns papeis. Vocês sempre fazem essas coisas às claras assim?". Jean então teve um sobressalto e se interrompeu repentinamente. Arregalou os olhos e piscou várias vezes, como que para se manter acordado. Manter a concentração naquele estágio de embriaguez não haveria de ser uma tarefa simples.

Cades o observava atentamente com breves sinais afirmativos com a cabeça; seu interesse finalmente fora despertado pelo rapaz. Pôs a mão dentro do casaco e tirou um cartão do bolso interno, entregou-o e se levantou para se retirar.

"Amanhã, depois que você curar sua ressaca, me ligue. Faça tudo direitinho e você nunca mais vai precisar procurar um emprego".

Cades saía a passos largos do bar seguindo a rua à direita absorto nos próprios pensamentos. Puxava a manga do casaco para olhar seu relógio sem ver as horas várias vezes conforme andava enquanto sua mente vagava por recônditos obscuros da rotina da metrópole.

"Ele fala em magos. Ele sabe de mim" recapitulou. "Pietro o procurou. É melhor esse cara valer a pena".
Leia Mais

As crias de Entre Metais

Bela obra do engenho humano ou asqueirosa ferida na fábrica da História de nossa bela nação: essa é Entre Metais. Dizem alguns que essa grande cidade é um dos marcos mais evidentes da conquista humana dos próprios limites, enquanto outros a consideram o ícone mais caricato da decadência de uma civilização que perdeu o rumo.

O que seria Entre Metais se não uma combinação das duas coisas? Afinal, bela e decadente é a maior metrópole nascida no antigo reino de Thornum, e hoje capital comercial da República de Nova Thornum. Uma cidade de luzes pontuais, onde a exuberante radiância de alguns ofusca o brilho fébil de outros. E, de tão fascinantes brilhos que marcam a trilha da bela cidade, igualmente formosas e imponentes sombras ganham vida atrás de cada obstáculo.

Não é inteiramente bela ou feia essa gigante, mas composta de um mosaico de cacos de vidas doces e amargas que dela são filhas. São crias de Entre Metais artistas de visão ilimitada, cujos traços servem de adorno a palácios em nações distantes, assim como também o são os adolescentes que trocam os frutos de suas empreitadas furtivas por doses modestas de químicos ilegais vendidos em becos mal iluminados. São crias de Entre Metais muitos sábios de mente iluminada, empreendedores que acreditam que limites existem para serem derrubados, ousados publicitários que desafiam os padrões em nome de suas marcas protegidas, idealistas fervorosos e sedentos por uma vida de lutas e filantropos apaixonados pelo futuro; porém, também o são as crianças de rua que pedem esmolas no sinaleiro escondidas dos furgões dos serviços sociais, os cafetões que comandam a diversão escusa de figurões enjoados de suas esposas, as prostitutas dispostas a alugar o corpo para prazeres vis por quantias modestas em dinheiro e os fetos abortados de clínicas clandestinas ocultas em prédios residenciais.

Há, porém, uma classe de crias de Entre Metais que não consta em lista alguma. Não é citada abertamente em anúncios de festivais, editais de políticas públicas ou pronunciamentos policiais. Vagam pelas ruas, salões e escritórios da metrópole os reflexos de uma realidade que se deformou há muito tempo. Não diferem aos olhos da maioria esses homens e mulheres que se dissolvem em todos os círculos sociais e políticos. Não dentro ou fora da lei, mas pretensamente acima dela, povoam o mito popular e a boca pequena de lendas novas e antigas com suas aparições.

Eles são os outros: os filhos esquecidos, escondidos sob mantos de humanidade. Anjos ou demônios, monstros ou heróis, reúnem-se em salas subterrâneas e em grandes salões comerciais para darem forma e rumo a conspirações que as almas dos agentes da lei e do crime não imaginam existir. Não se ouve falar sobre eles… ao mesmo tempo que se ouve o tempo todo. Você já deve tê-los visto vagando por aí... espero apenas que não se recorde.

Leia Mais

Formulário de contato

Nome

E-mail *

Mensagem *